31.5.10

Dentro do ônibus III

Nenhum ônibus me preparou para aquele que teria que encarar depois de vir habitar o castelo (?) de meu príncipe encantado. Ele passa por aqui quatro vezes por dia em horários esquisitíssimos. Primeiro ouço seu som longíquo, depois vejo o pó que sua carroceria levanta e, finalmente, ele surge na curva da estrada.

Nos bons tempos eu levava um lenço para limpar os bancos cobertos de poeira, mas hoje em dia eu me limito a usar uma roupa que possa sujar sem dramas. Ele transforma os 8km que me separam da civilização em uma hora de viagem. Uma hora sacolejando por várias estradas de terra, percorrendo fazendas, atravessando canaviais, bambuzais, engolindo poeira vermelha.

Eis o elo vital que liga a área rural a aquilo que poderia ser chamado de minha cidade, mas que eu considero apenas um ponto de passagem para algum outro lugar, um outro lugar muito desejado, porém ainda indefinido.


26.5.10

Em um universo pararelo...

(Max Kuehne, sem título)

Há uma pequena cidade cortada por um rio e vigiada por uma igreja. Lá as pessoas ainda compram pão fresco todos os dias e andam de bicicleta sem marchas para medir suas forças com as ladeiras.

23.5.10

Summertime - J.M. Coetzee


Último romance lido (se é que se pode chamá-lo assim). Último livro do Coetzee. Ele supostamente é a compilação de relatos de algumas pessoas que conheceram o autor no período em que ele tinha cerca de trinta anos e vivia na África do Sul. Há até mesmo uma brasileira entre as mulheres que teriam tido algum tipo de relacionamento com ele.
Coetzee faz uma brincadeira consigo mesmo, pois os relatos teriam sido recolhidos após a sua morte. Macabro? Acho que não, parece mais uma forma de estragar o prazer dos futuros biógrafos e misturar ficção com realidade.
Como sempre, ele não é nada generoso consigo mesmo, todos o descrevem como um tipo esquisito, isolado, com dificuldades para se relacionar com outras pessoas, um peixe fora d'água. O sucesso posterior e a fama como autor praticamente ficam em segundo plano e os relatos sobre o contato de cada uma das pessoas com Coetzee servem mais de pretexto para que elas falem sobre suas próprias vidas e também sobre a Africa do Sul, o apartheid, as barreiras de relacionamento. De certa maneira, Coetzee deixa entrever por que deixou o país quando era jovem e imigrou definitivamente para a Austrália depois de se tornar um autor famoso.
Leitura agradável, texto bem escrito, como era de se esperar, mas não se tornou um de meus favoritos do autor.


20.5.10

Rolhas e garrafas

Faz tempo que não escrevo nada sobre vinhos apesar de não ter deixado de bebê-los. Há muitos blogueiros (acho essa palavra horrorosa, mas ela é incontornável) que entendem muito mais do assunto do que eu, por isso, fico sem graça em falar sobre a bebida. Eu nem bebo tanto assim, sou bem modesta, uma taça ou duas para acompanhar uma boa refeição.

Saibam que quando eu disser algo sobre eles, trata-se de uma opinião pessoal. Li alguns livros, mas isso não mudou minha vida, nem me tranformou em uma "expert", foi o mesmo que ler um livro de viagem sobre a Turquia. Você sabe que há bazares, mesquitas, que se come kebab, mas é tudo meio vago. Não é o mesmo que ir até lá.

Ademais, minha crença é a seguinte: há quem goste de jiló, há quem não goste, mas o fato é que sempre há quem o coma, o mesmo ocorre com os vinhos, há quem goste de um tipo, há quem não goste, mas uma garrafa sempre encontra quem a entorne.

Isso posto, gostei do Tabalí Pinot Noir acima, e o vinho feito com a Pinot Noir nem sempre agrada ao meu paladar, mas este é o segundo vinho chileno feito com ela que achei muito bom. O primeiro (que para mim ainda é o primeiro) é o Amayna da Garcés Silva.

***

Uma vez disse que adorava colecionar/guardar pedras, o que esqueci de mencionar é que também guardo garrafas de bebidas e rolhas. De tempos em tempos eu tenho que me desfazer das lindas garrafas de Kirsch, Frangelico, Drambuie, etc., para ter espaço. Felizmente, rolhas são menores. Elas são colocadas dentro de um pote e servem de enfeite, além disso, podem ser usadas para tapar garrafas de bebidas mais longevas cujas rolhas se estragaram.

2.5.10

Dentro do ônibus II

Mais uma para a série dentro do ônibus.

***

Entrei no ônibus que estava parado no terminal pela manhã e me sentei. Havia umas poucas pessoas em outros assentos. Um senhor de uns 60 anos entra e vai lá para a frente do corredor e começa o seu discurso:

"Pessoal, desculpe incomodar vocês, mas eu preciso comprar uma passagem para ir até X (nome de uma cidade da região) para o enterro da minha filha que morreu em um acidente de moto. A passagem custa R$ 21,00, quem me ajuda a completar a passagem, pelo amor de deus? Eu sou um humilde sorveteiro que trabalha aqui pelo terminal. Quem me ajuda?"

Ele anda pelo corredor esperando pelas contribuições, um pedaço de mim, uma parte que sente um pouco de vergonha e culpa, fica se remoendo sobre se deve ou não dar alguma coisa, mas aguento firme, por princípio, não dou dinheiro para quem o pede, mas algumas pessoas dão uns trocados.

"Deus abençoe a todos! E gente, moto é uma coisa muito perigosa, não andem de moto!", completa, após certificar-se de que ninguém vai dar mais nada.

Logo que ele desce do ônibus, uma mulher se vira e diz que aquele senhor repete a mesma coisa todos os dias, todos ficamos indignados. Dizer que a filha morreu todos os dias, que é isso?

Poucos minutos depois, não sei se por distração ou se pelo fato do ônibus ter ficado mais cheio, o mesmo senhor entra outra vez e repete a mesma ladainha. Ninguém fala nada enquanto os recém-chegados estendem os seus trocados, só balançamos a cabeça enquanto ele se apressa para sair do ônibus prestes a entrar em movimento.

1.5.10

Memórias de um nômade - Paul Bowles


Essa é uma de minhas leituras recentes. Li "O céu que nos protege", obra mais conhecida do autor, há mais de 15 anos atrás e não me lembro direito dos detalhes da história, nem de se gostei ou não, enfim, ela não deixou uma impressão muito forte. Também vi o filme de Bernardo Bertolucci e a sensação é a mesma. Acho que o mais interessante é o exotismo do cenário, o deserto do norte da África.
As Memórias de um Nômade cobrem a infância e parte da vida adulta de Paul Bowles, ele escreve sobre seu cotidiano na Nova York do começo do século XX, a relação conflituosa com o pai, sua vida com a esposa, Jane, e, principalmente, sobre as suas viagens pelo mundo. Período que se inicia quando atinge a maioridade, com uma "fuga" para Paris, e termina no Marrocos, país que adota para viver o resto de seus dias. Ele percorre vários países da Europa, da costa norte africana, sudeste da Ásia e América Latina.
Antes de ser conhecido como escritor, Paul Bowles trabalhava compondo trilhas musicais e acompanhamentos sonoros para peças de teatro e filmes, o que lhe dava a liberdade de ir e vir de e para onde quisesse. Se precisava de inspiração, ia até o Marrocos e alugava uma casa e um piano no lugar que julgava conveniente, quando se cansava do lugar, ia até o México onde fazia a mesma coisa.
Não sei se ele ganhava bem ou se a vida era mais barata na primeira metade do século, mas Bowles não tinha qualquer dificuldade para viver onde tinha vontade, bastava querer. Bons tempos. Ele chega até mesmo a comprar um ilha simpática em uma praia do Sri Lanka, a ilha de Taprobana. (Hoje, um hotel).
O interessante é observar como os artistas no estrangeiro formavam uma comunidade bastante solidária, quando o autor ia para um lugar novo, sempre encontrava um amigo de um amigo que estava disposto a abrigá-lo ou a ajudá-lo com algo, da mesma forma, quando ele e Jane estavam estabelecidos em alguma cidade, bastava alguém aparecer e dizer que era amigo de algum conhecido dos dois para ser bem recebido.
Entre as figuras que desfilam pelo livro (e o livro é isso mesmo, um desfile de figuras, lugares e acontecimentos) estão: Tennessee Williams, Gore Vidal, Truman Capote e Gertrude Stein, para citar apenas alguns nomes.
As viagens eram feitas à moda antiga, sem data para voltar, e geralmente de navio. Bowles lamenta o advento dos aviões, pois o charme da viagem, segundo ele, acabou se perdendo. O livro termina quando as viagens deixam de lhe dar o mesmo prazer que em sua juventude. Período que coincide com a deterioração da saúde de sua esposa.
O texto em geral é bem rápido, jornalístico, quase uma sucessão de fatos. Apenas no final, após escrever longamente sobre suas memórias, um Bowles já bem mais velho se dá ao luxo de escrever algumas reflexões sobre sua vida, por exemplo, sobre a razão de ter se fixado no Marrocos:

"Eu não escolhi morar em Tanger de forma permanente. Isso foi alheio a minha vontade. Minha estadia devia ser de curta duração, tinha a intenção de ir para outro lugar, ainda e sempre, sem jamais me fixar definitivamente. A preguiça me fez postergar a partida. Depois veio o dia em que tive que me render às evidências: o mundo não apenas estava muito mais cheio do que há apenas alguns anos, mas os hotéis estavam piores, as viagens menos agradáveis e a maioria dos lugares menos bela do que antes. A partir de então, cada vez que me encontrava em outro lugar, tinha imediatemente vontade de estar em Tanger. Se estou aqui até hoje, é apenas porque este é o lugar em que me encontrava quando compreendi que o mundo estava mais feio e que não tinha mais vontade de viajar."

E sobre a morte:

"Em minha história, por exemplo, não há vitórias espetaculares simplesmente porque eu não tive que lutar. Eu perseverei e aguardei. Acho que é o que faz a maioria das pessoas, de qualquer forma, as oportunidades de fazer algo diferente são cada vez mais raras. Os marroquinos dizem que para se viver plenamente é preciso pensar sempre na morte. Eu concordo com essa máxima sem reservas. Infelizmente, sou incapaz de conceber minha própria morte como o final de um espetáculo muito mais aterrorizante: a velhice. Eu me imagino desdentado, impotente, totalmente dependente de uma pessoa que pago para tomar conta de mim, e que pode deixar o quarto a qualquer instante para nunca mais voltar. Certamente não é isso que os marroquinos têm em mente quanto afirmam que é preciso pensar na morte. Eles consideream minhas visões como manifestações de um medo particularmente abjeto. A terapêutica de uns pode ser a tortura de outros. "Adeus, diz o moribundo ao espelho que lhe estendem. Nós não nos veremos mais." Eu citei esse epigrama de Valéry em "O céu que nos protege" porque essa visão me parecia, na época, particularmente forte. Hoje, como já não me imagino como um simples espectador, mas como o protagonista dessa cena, ela me parece repugnante. Para que o adeus soe justo, bastaria que o moribundo acrescentasse estas curtas palavras: "Graças a Deus!"."

Dentro do ônibus



Ontem, andando pela cidade e tomando um ônibus com uma enorme sacola de plástico com um cabo flevível (mangueira?) de aspirador de pó, eu fiquei pensando nas coisas esquisitas que já carreguei dentro dos ônibus. Lembrei de um galo e de um linguado. O galo era grande, vermelho e vistoso. Ele veio dentro de uma sacola de feira com os pés amarrados e deve ter levado o susto de sua vida. Eu era criança e minha mãe tinha um pequeno galinheiro, não comíamos os animais, era pura recreação, uma forma de lembrar o passado da roça dos meus pais. Chegou uma época em que o bairro cresceu demais e já não era possível manter os animais. Eles foram vendidos a contragosto e certamente viraram uma refeição.

O linguado foi idéia minha. Não sei por que raios eu decidi entrar em uma peixaria e levar um peixe para minha mãe preparar. A peixaria ficava na cidade vizinha e nem me passou pela cabeça que ele poderia estragar debaixo de um sol de meio-dia. Sei que comecei a sentir um cheiro desagradável vindo de dentro da sacola plástica em que o linguado estava embrulhado apenas em uma folha de jornal. Torcia para que ninguém mais sentisse o cheiro dentro do ônibus. Quando cheguei em casa, ele foi para o lixo. Sorte que o peixe não era muito grande e acho que já nem estava mais tão fresco porque paguei pouco por ele.

Lembranças bizarras. Qual foi a coisa mais estranha que você levou dentro de um ônibus?