Ontem foi o primeiro dia de aula do curso deste semestre. Professor made in Japan. Ele chegou de viagem no domingo e deu aula na segunda com jetlag e
tudo. Não fala português, a aula foi toda em japonês. Estava
preocupada, perguntando-me se não ficaria perdida, mas até que entendi
bem, ele escolhe palavras simples, fala devagar e de forma clara. Fiquei
contente. O problema é do meu lado. Para ler e escrever há os
dicionários, mas falar exige uma resposta imediata e, enquanto fico
procurando pelas palavras apropriadas, sinto que elas fogem como
borboletas. Para me comunicar melhor, tenho que falar mais, nem que
esteja errado, não é mesmo? Darei o rosto a bater e sei que vai doer.
Nós nos apresentamos e discutimos um texto de
Natsume Soseki
do livro "Dez noites de sonhos". Lemos o primeiro sonho, um dos mais
bonitos e românticos. Acho que já há tradução para o português, mas
decidi fazer minha versão. Traduções nem sempre são acessíveis e achei
que algumas pessoas poderiam se interessar. Se gostarem, posso tentar
traduzir mais textos curtos de autores pouco conhecidos por aqui no
futuro, é um bom exercício para mim. E se houver erros ou correções a
fazer, por favor, digam.
O sonho da primeira noite
Tive este sonho.
Sentava-me
com os braços cruzados à cabeceira de
uma mulher que estava deitada com o rosto voltado para cima. Ela disse
que iria morrer com uma voz calma. Seus
longos cabelos espalhavam-se sobre o travesseiro emoldurando os
contornos de
sua delicada face oval. A cor de seu sangue era visível sob as bochechas
brancas, seus lábios eram vermelhos. Ela não parecia prestes a
morrer. Mas a mulher, com voz calma, disse claramente que iria morrer.
Eu
também achava que ela iria morrer. “Ah, então você vai morrer?”,
perguntei
espiando-a. “Vou morrer”, respondeu ela abrindo os olhos. Olhos grandes e
úmidos, uma superfície negra circundada por longos cílios. Meu reflexo
flutuava vividamente no interior de suas pupilas.
Perguntava-me se ela realmente iria morrer observando o brilho
daqueles olhos negros cuja transparência permitia que mergulhasse até seu
interior. “Você não vai morrer, não é mesmo? Está tudo bem, não está?”,
perguntei outra vez aproximando os lábios de sua cabeceira. “Mas sim, vou morrer,
não há o que fazer”, respondeu ela com os olhos sonolentos.
“Você consegue ver meu rosto?”, perguntei com emoção. “Se o
vejo? Ora, não estou refletida em seus olhos?”, respondeu rindo. Afastei o rosto
sem dizer nada. Perguntava-me se ela realmente iria morrer enquanto
cruzava os braços. Após algum tempo, ouvi-a dizer:
“Depois que eu morrer, enterre-me. Cave um buraco com uma
concha de madrepérola. Marque meu túmulo com os pedaços das estrelas que caíram
do céu. Então fique ao seu lado e espere, pois irei reencontrá-lo”.
“Quando você retornará?”, perguntei.
“O sol nasce, não é mesmo? Depois ele se põe, não é mesmo?
Então nasce e se põe outra vez, não é mesmo? Você pode esperar enquanto o sol
rubro vai do leste para o oeste, do leste e cai no oeste?”
Balancei a cabeça sem dizer nada. Ela aumentou ligeiramente
a entonação de sua voz calma:
“Espere cem anos”, disse de forma decidida, “sente-se ao
lado de meu túmulo e espere cem anos. Virei ao seu encontro com certeza”.
Respondi apenas que a esperaria. Então o reflexo de meu
rosto, que podia observar vividamente no interior de suas pupilas negras, começou a se
desmanchar. Era como se as águas começassem a se movimentar e perturbar o reflexo
de uma sombra, quando achei que elas iriam transbordar, os olhos se fecharam.
Lágrimas surgiram entre seus longos cílios e escorreram sobre as suas bochechas.
Ela morrera.
Fui ao jardim e cavei um buraco com uma concha de
madrepérola. Ela era grande, com bordas regulares e afiadas. Cada vez que
retirava a terra, a lua se refletia na sua parte externa. Sentia o cheiro da terra
úmida. Terminei de cavar o buraco após algum tempo. Depositei a mulher em seu
interior e comecei a cobri-la com a terra macia. Cada vez que fazia isso, a lua era
refletida pela concha.
Depois, recolhi os pedaços de estrelas e coloquei-os
sobre a terra. Eles eram arredondados, deviam ter perdido as arestas
enquanto vieram caindo do céu por um longo tempo e ficaram assim. Enquanto os pegava e
colocava sobre a terra, meu peito e mãos aqueceram-se um pouco.
Sentei-me sobre o musgo. Ia ficar ali esperando por cem
anos, pensava, observando as pedras das estrelas. Logo, como dissera a mulher,
o sol nasceu no leste. Era um sol grande e vermelho. Logo, também como dissera
a mulher, ele se pôs no oeste e desapareceu de repente ainda vermelho. “Um
dia”, contei.
Após algum tempo, um sol rubro se levantou e então se
pôs em silêncio. “Dois dias”, contei outra vez.
Enquanto
contava os dias dessa forma, não tinha mais ideia de quantas vezes vira
o sol. Não importava quanto contasse, um inesgotável sol
vermelho passava sobre minha cabeça. E, ainda assim, os cem anos nunca
chegavam. Por fim, comecei a achar que fora enganado pela mulher
enquanto
observava o musgo que crescera sobre as pedras arredondadas.
Logo
após ter esse pensamento, um caule verde surgiu por baixo das pedras
inclinando-se em minha direção. Ele foi crescendo e parou perto de meu
peito. Na
ponta do caule delgado e trêmulo, ligeiramente inclinada, uma flor em
botão
abriu suas pétalas. Era um lírio branco cujo perfume penetrava meu nariz
e ia até
os ossos. Ele foi coberto pelo orvalho vindo de algum ponto acima e
balançou de um lado para o outro devido ao próprio peso. Inclinei o
pescoço e
depositei um beijo nas pétalas brancas molhadas pelo orvalho frio.
Quando
afastava o rosto do lírio, olhei para o céu distante ao acaso e vi uma
única
estrela brilhando na madrugada.
“Então já se passaram cem anos!”, só então me dei conta
daquilo.