20.9.13

O sapo

O céu desta tarde me lembrou do céu de um outro dia. Tinha dezoito anos. Acabara de me matricular no curso de filosofia e não estava certa sobre o que fazer da vida. Algo que não mudou muito, infelizmente. Filosofia era uma ideia sedutora, sem futuro algum, mas eu me recusava a prestar vestibular para um curso que pudesse me dar algum status social ou garantir um emprego "respeitável". (A gente sempre enfia o pé na jaca por vontade própria).
Naquele dia, estava sentada à beira da piscina de um hotel fazenda vazio no meio do Pantanal mato-grossense com um exemplar de "Tristes Trópicos" no colo. Parecia ser o livro adequado para ler naquele lugar e eu tinha lá as minhas veleidades intelectuais. A piscina estava suja e um sapo morto boiava em sua superfície. 
Ganhara a viagem como prêmio de um concurso cultural promovido por um jornal e acompanhava o trabalho de campo de uma bióloga que protegia as araras azuis. Passávamos o dia percorrendo os arredores para checar ninhos, medir e pesar aves. Achava o trabalho daquela mulher apaixonante.
Conforto zero, a vastidão dos campos, o ruído dos bichos à noite, o isolamento total, queria aquilo para mim. Foi algo mágico e lamentei voltar. No entanto, quando penso em tudo o que vi e senti naqueles poucos dias, a imagem que logo me vem à mente é a daquele sapo morto na piscina suja iluminada pelo sol do final de tarde.

17.9.13

O sonho da primeira noite - Natsume Sôseki

Ontem foi o primeiro dia de aula do curso deste semestre. Professor made in Japan. Ele chegou de viagem no domingo e deu aula na segunda com jetlag e tudo. Não fala português, a aula foi toda em japonês. Estava preocupada, perguntando-me se não ficaria perdida, mas até que entendi bem, ele escolhe palavras simples, fala devagar e de forma clara. Fiquei contente. O problema é do meu lado. Para ler e escrever há os dicionários, mas falar exige uma resposta imediata e, enquanto fico procurando pelas palavras apropriadas, sinto que elas fogem como borboletas. Para me comunicar melhor, tenho que falar mais, nem que esteja errado, não é mesmo? Darei o rosto a bater e sei que vai doer.

Nós nos apresentamos e discutimos um texto de Natsume Soseki do livro "Dez noites de sonhos". Lemos o primeiro sonho, um dos mais bonitos e românticos. Acho que já há tradução para o português, mas decidi fazer minha versão. Traduções nem sempre são acessíveis e achei que algumas pessoas poderiam se interessar. Se gostarem, posso tentar traduzir mais textos curtos de autores pouco conhecidos por aqui no futuro, é um bom exercício para mim. E se houver erros ou correções a fazer, por favor, digam.



O sonho da primeira noite

Tive este sonho.
Sentava-me com os braços cruzados à cabeceira de uma mulher que estava deitada com o rosto voltado para cima. Ela disse que iria morrer com uma voz calma. Seus longos cabelos espalhavam-se sobre o travesseiro emoldurando os contornos de sua delicada face oval. A cor de seu sangue era visível sob as bochechas brancas, seus lábios eram vermelhos. Ela não parecia prestes a morrer. Mas a mulher, com voz calma, disse claramente que iria morrer. Eu também achava que ela iria morrer. “Ah, então você vai morrer?”, perguntei espiando-a. “Vou morrer”, respondeu ela abrindo os olhos. Olhos grandes e úmidos, uma superfície negra circundada por longos cílios. Meu reflexo flutuava vividamente no interior de suas pupilas.
Perguntava-me se ela realmente iria morrer observando o brilho daqueles olhos negros cuja transparência permitia que mergulhasse até seu interior. “Você não vai morrer, não é mesmo? Está tudo bem, não está?”, perguntei outra vez aproximando os lábios de sua cabeceira. “Mas sim, vou morrer, não há o que fazer”, respondeu ela com os olhos sonolentos.
“Você consegue ver meu rosto?”, perguntei com emoção. “Se o vejo? Ora, não estou refletida em seus olhos?”, respondeu rindo. Afastei o rosto sem dizer nada. Perguntava-me se ela realmente iria morrer enquanto cruzava os braços. Após algum tempo, ouvi-a dizer:
“Depois que eu morrer, enterre-me. Cave um buraco com uma concha de madrepérola. Marque meu túmulo com os pedaços das estrelas que caíram do céu. Então fique ao seu lado e espere, pois irei reencontrá-lo”.
“Quando você retornará?”, perguntei.
“O sol nasce, não é mesmo? Depois ele se põe, não é mesmo? Então nasce e se põe outra vez, não é mesmo? Você pode esperar enquanto o sol rubro vai do leste para o oeste, do leste e cai no oeste?”
Balancei a cabeça sem dizer nada. Ela aumentou ligeiramente a entonação de sua voz calma:
“Espere cem anos”, disse de forma decidida, “sente-se ao lado de meu túmulo e espere cem anos. Virei ao seu encontro com certeza”.
Respondi apenas que a esperaria. Então o reflexo de meu rosto, que podia observar vividamente no interior de suas pupilas negras, começou a se desmanchar. Era como se as águas começassem a se movimentar e perturbar o reflexo de uma sombra, quando achei que elas iriam transbordar, os olhos se fecharam. Lágrimas surgiram entre seus longos cílios e escorreram sobre as suas bochechas. Ela morrera.
Fui ao jardim e cavei um buraco com uma concha de madrepérola. Ela era grande, com bordas regulares e afiadas. Cada vez que retirava a terra, a lua se refletia na sua parte externa. Sentia o cheiro da terra úmida. Terminei de cavar o buraco após algum tempo. Depositei a mulher em seu interior e comecei a cobri-la com a terra macia. Cada vez que fazia isso, a lua era refletida pela concha.
Depois, recolhi os pedaços de estrelas e coloquei-os sobre a terra. Eles eram arredondados, deviam ter perdido as arestas enquanto vieram caindo do céu por um longo tempo e ficaram assim. Enquanto os pegava e colocava sobre a terra, meu peito e mãos aqueceram-se um pouco.
Sentei-me sobre o musgo. Ia ficar ali esperando por cem anos, pensava, observando as pedras das estrelas. Logo, como dissera a mulher, o sol nasceu no leste. Era um sol grande e vermelho. Logo, também como dissera a mulher, ele se pôs no oeste e desapareceu de repente ainda vermelho. “Um dia”, contei.
Após algum tempo, um sol rubro se levantou e então se pôs em silêncio. “Dois dias”, contei outra vez.
Enquanto contava os dias dessa forma, não tinha mais ideia de quantas vezes vira o sol. Não importava quanto contasse, um inesgotável sol vermelho passava sobre minha cabeça. E, ainda assim, os cem anos nunca chegavam. Por fim, comecei a achar que fora enganado pela mulher enquanto observava o musgo que crescera sobre as pedras arredondadas.
Logo após ter esse pensamento, um caule verde surgiu por baixo das pedras inclinando-se em minha direção. Ele foi crescendo e parou perto de meu peito. Na ponta do caule delgado e trêmulo, ligeiramente inclinada, uma flor em botão abriu suas pétalas. Era um lírio branco cujo perfume penetrava meu nariz e ia até os ossos. Ele foi coberto pelo orvalho vindo de algum ponto acima e balançou de um lado para o outro devido ao próprio peso. Inclinei o pescoço e depositei um beijo nas pétalas brancas molhadas pelo orvalho frio. Quando afastava o rosto do lírio, olhei para o céu distante ao acaso e vi uma única estrela brilhando na madrugada.
“Então já se passaram cem anos!”, só então me dei conta daquilo.