A literatura, como diria uma cantora andalusa, é um perigo. E, agora que retorno, finalmente, ao número onze, o número daqueles que jogam no ataque, e que mencionei o perigo, posso recordar aquela página de Dom Quixote na qual se discute os méritos da milícia e da poesia, e na qual imagino que, no fundo, se fale do grau de perigo, ou do grau de virtude, exigido pela natureza dos dois ofícios. E, se Cervantes, que foi soldado, faz a milícia, o ofício de soldado, vencer o honorável ofício de poeta, e se lemos aquelas páginas com cuidado (coisa que agora, enquanto escrevo este discurso, não faço, mesmo que da mesa onde estou sentado, veja muitíssimo bem as minhas duas edições de Dom Quixote) sentimos um forte aroma de melancolia, porque Cervantes faz sua juventude, o fantasma de sua juventude perdida, vencer a realidade do exercício da prosa e da poesia, até então tão inclemente para com ele. E isso me vem à mente porque, em grande medida, tudo o que escrevi é uma carta de amor e de adeus à minha geração, à nossa geração que nasceu nos anos cinquenta e que, em determinado momento, escolheu o exercício da milícia, em nosso caso, seria mais correto dizer da militância, e confiou o pouco que possuía, que era muito, porque era a nossa juventude, a uma causa que acreditava ser a mais generosa do mundo e que, em certo sentido, o era, sem que, em realidade, o fosse. Inútil dizer que combatemos exaustivamente, mas que tínhamos chefes corruptos, líderes covardes, aparatos de propaganda que eram piores do que leprosários, e que lutávamos em nome de partidos que, se tivessem vencido, teriam nos enviado imediatamente aos campos de trabalho forçado; lutávamos e dispúnhamos toda a nossa generosidade a serviço de um ideal morto mais de cinquenta anos antes, e alguns de nós o sabíamos, não podíamos deixar de sabê-lo se tivéssemos lido Trótski ou se fôssemos trotskistas, no entanto, lutávamos do mesmo jeito, porque éramos estúpidos e generosos, como são os jovens, que dão tudo e não pedem nada em troca, e agora não resta mais nada desses jovens, aqueles que não morreram na Bolívia morreram na Argentina ou no Peru, e aqueles que sobreviveram foram morrer no Chile ou no México, e aqueles que não foram assassinados ali, foram assassinados mais tarde na Nicarágua, Colômbia ou El Salvador. Toda a América Latina está semeada de ossos desses jovens esquecidos. E é essa a mola que impele Cervantes a escolher a milícia em detrimento da poesia. Seus companheiros também estavam mortos. Ou estavam velhos e abandonados, sós e na miséria. Escolher significava escolher a juventude, escolher os derrotados, escolher aqueles que não tinham mais nada. E é isso o que faz Cervantes: escolhe a juventude.
Roberto Bolaño, Discurso de Caracas, traduzido (do italiano por mim)
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